Daquele punhado de mestres que povoam o meu imaginário de mais de vinte anos da Escola Soares dos Reis, há todos os espaços do edifício em si da “velha” Firmeza que habitavam, desde as salas onde leccionavam até aos locais onde era mais que provável encontrá-los. E convoque-se a nossa memória visual: havia na sala de prof’s, um cantinho natural para a Ilda, essa colega “de cabelos brancos”. Linda, elegante, a irradiar simpatia, cujo rosto se transfigurava no entusiasmo sublime com que falava ou expunha assuntos de arte, do seu ensino, do “seu” design. Aquele cantinho do lado esquerdo de quem entrava, nos intervalos das aulas da noite ou de fim de tarde, era lugar de tertúlia, de riso rasgado, de seriedade absoluta da conversa da Política à Cultura, da Escola ao sabor do Saber. Ou da Arquitectura dita “popular” apadrinhada pelo Manuel Graça Dias, com aqueles “monumentos” na praia da Caparica. E também os entusiasmos “militantes” com o trabalho de tantos criadores e defensores de património tais como o Claúdio Torres em Mértola, para onde “convocava” vários dos seus cursos de formação, aquando dos seus trabalhos no Centro de Formação João de Deus.
Reconheço certamente que não seria eu a pessoa mais indicada para fazer o elogio “fatal” desta grande mulher, professora da Soares dos Reis ao longo de décadas, pedagoga, autora de livros e manuais, orientadora de estágios, quase diria a “madrinha” do 5º. Grupo , para usar uma terminologia que, sendo do passado, não é de todo ultrapassada, dado que coincide com uma época em que ainda era permitido sonhar, ter ideais, realizar projectos, criar uma “Escola Nova” como quem carrega aos ombros aquela imensa Utopia do Fanhais chamada “Canção da Cidade Nova” que nos fazia levantar todas as manhãs com a ideia de um país a construir. Com a certeza de que estávamos dentro da História, interferindo nos destinos colectivos, através das práticas lectivas, abrindo postigos, janelas, portas, becos, ruas ou avenidas para a sociedade portuguesa do Futuro, resgatada do medo e da míngua de Liberdade. Haveria, por isso, muito mais gente, uma plêiade de artistas plásticos, de arquitectos, de designers, de professores que foram seus discípulos, amigos, colegas, alunos, formandos…com muito maior e mais abundante experiência de proximidade e de intimidade para o fazer que a minha escassa relação com a Ilda Seara.
Mas pronto. Recordo o seu contínuo entusiasmo transbordante quando me falava de arquitectura, do “seu” moinho que recuperara, ali para os lados de Paço de Sousa, onde gostava de passar os seus fins de semana, como refúgio. E deixava transparecer um halo psicológico e intelectual cuja finura saltava esses tímidos sinais de um gosto estético burguês para assumir por inteiro a substância de uma existência criativa e criadora, capaz de iluminar o coração dos outros e de os inquietar, de os abrir ao desejo e à busca de horizontes. Porque há realmente pessoas que são assim deste jeito, que andam a serpentear as nossas vidas até as sacudir por dentro, gerando novas possibilidades de ser, tais como as de ir até ao interior último da Palavra. Por isso tanto cultivava Wittgenstein nas suas acções de formação. Sabendo que é na comunicação e na linguagem mesma que tudo se decide, tanto no que se diz como no que se desdiz ou omite. Na Arte, como na Política que a acompanha com toda a presença e proximidade, legítima ou não.
. Um indício superlativo das suas preocupações com a Escola Soares dos Reis era a Biblioteca. Que a queria limpa e arejada, mas acima de tudo, actualizada, instando com os responsáveis para a aquisição de obras fundamentais no domínio das artes, da estética, do cinema, da arquitectura e suas novidades. Creio que podemos firmar este grande traço da sua personalidade, como se o mesmo instituísse o risco contínuo da perenidade da Arquitecta Ilda Seara entre nós nesta Comunidade educativa: o amor ao saber ou a arte de amar a Arte como a forma mais elevada de viver!
José Melo (de Filosofia)