23.12.09

NATAL OUTRA VEZ (cont.)

Sonhei que não tinha dinheiro. Para prendas, para nada. Nem chavo. Assim as coisas teriam de passar obrigatoriamente por este lado: cumprir o ritual natalício com mais palavras. Mas já há palavras a mais. Foi até para tal fim que se inventaram os telemóveis: para manter as pessoas “contactáveis”. Facto que, a ser levado a sério, nos exigiria outro tratamento ao desprezado sentido do tacto. Adiante.
Mas como acastelar conjuntos de adjectivos, visitar algumas metáforas alusivas à quadra, perder também o meu pedaço de sensatez, embarcando, enfim, nesta voragem de rodopios mais ou menos carnavalescos, de luzes, de fatiotas, de fitinhas a reluzir em todas as esquinas, por dentro e por fora das nossas almas? Fico sempre despudorado, com a sensação de quem partiu, por querer, a asa de um anjo, retirando-lhe, desta feita, a oportunidade de cantar na Missa do Galo ou de convocar, por essa noite fria, os seus pastores, para o dever de ofício que os canteiros lhe deram, impondo-lhe os cânticos celestiais, as glórias e os hossanas que os homens organizados de hoje, tão dados a essa trapalhada confusa, mas utilíssima, a que chamam «markting», traduziram para a linguagem das novas tecnologias –o latim passou, é língua morta –o “english” dos supermercados, dos shopings, onde há um deus em cada prateleira, nunca escondido mas ali mesmo, generoso, à vista, se não mesmo em promoção, em carne e osso, um deusão a sério e não de plástico como também há muitos “made in China”.
Que é o chamado “espírito de Natal”? O amor da e à família? Não me gozem. Lá no fundo, bem no segredo do nosso íntimo, estamos todos a achar que somos uma data de “tansos”, a gastar presentes inúteis para quem os não merece e faz umas tremendas fitas a recebê-los, quem atravessa o seu deserto das tais « grandes superfícies» sem aquele requinte que se identifica no ar das mais brilhantes «madamas», loiras recentes de drogaria.
Não convoquemos os pobrezinhos para a nossa mesa de consoada que eles são os novos Profetas, os anunciadores desta nova Aurora, os mais procurados do sistema mediático, Pais-Natais de carne e osso, a que nada falta: travessas de poesia, vestimentas de romagem de amor puro e simples, mais rústico que todos os musgos dos presépios. Esses pobrezinhos, coitadinhos, ficam ricos, nestas alturas, por causa de tanta caridade, de tão boa consciência que escorre por eles abaixo…É por esta época que eu mais os invejo:nunca lhes falta nada por dentro e por fora do coração e fazem com que todos aqueles que, como eu, fingem que gostam muito dos pobrezinhos, se sintam de bem consigo mesmos e sejam ainda um pouco mais felizes.
Pronto. É claro que não vou mais esperar que o tempo sideral, cósmico, racional e abstracto, kronos, o tempo das ampulhetas electrónicas pare e nos devolva um Tempo primordial, solsticial, cíclico e recuperável, favorável, kairos! Só quero que Deus, o Senhor do Ser e do Nada, ou da Crise, da Vida e da Paz, vos faça um só favor, nesta quadra, vos conceda um suave presente: deposite na palma da vossa mão a música do silêncio!
E assim far-se-à uma Nova Luz de Natal. Um abraço amigo. José Melo

18.12.09

Exposição final (cont.)













Após a inauguração, procedeu-se à entrega de prémios aos alunos que se distinguiram nas diferentes áreas, tendo-se seguido uma cerimónia de homenagem a todos os professores e funcionários cuja dedicação à escola ficou simbolizada pela entrega de uma medalha concebida expressamente para o efeito. A sessão foi encerrada com a oferta de um ramo de flores à professora Lurdes Figueiral que, por razões profissionais, se ausentará da escola, a partir do próximo ano.
O dia 8 de Julho transformou-se pois, num dia de festa na Soares dos Reis.

Fotografia - Sérgio Coutinho
Texto - Alexandra Azevedo

Até já... (cont.)



Algumas palavras, em jeito de balanço, quero aqui deixar.
São palavras de agradecimento a todos aqueles que com o seu trabalho forneceram matéria-prima da qual este blog se alimentou, destacando a coordenadora, a professora Natália Lobo pelo convite e pela confiança depositada.
Como responsável pela concepção, realização gráfica e publicação, vivi, respirei e sonhei blog.

Passo a passo foi nascendo, tomando forma, esta ideia que liga a biblioteca a um mundo global à distância de um clique.
Longe de ser um projecto acabado, porque se quer melhor, mais interactivo, mais eficaz, ele foi uma experiência enriquecedora na qual me empenhei, aplicando e aprofundando saberes.
Espero ter honrado todos aqueles que com o seu esforço me ajudaram a crescer, como artista, como homem e como ser que se completa no colectivo.

Umas boas férias, mais que necessárias para retemperar forças, que uma nova etapa se avizinha.

Até ao próximo ano escolar.



Obrigado pela ajuda. Não esquecendo a da dona Ana Maria.

E lembrem-se "ler" é fundamental.

Professor Sérgio Coutinho

O jazz da Soares (cont.)









O Jazz da Soares – “Passoróis” e Rouxinóis

Desde há longos anos que eu meditava num desses paradoxos de que a vida colectiva é pródiga e a que a nossa Soares dos Reis não foge à regra: ‘como é que, sendo esta escola de “artes” as expressões artísticas se haveriam de enganchar no mundo das plásticas, atirando para longe as artes performativas, a dança, o teatro, a música, a literatura, até?’ É certo que houve há muito os “Ornatos Violeta”do Manel Cruz, do Quinorme & Compª.. Que também houve o Grupo de Teatro Xis. E que houve alguns concertos “a sério”, como o da “Orquestra Orff do Porto” e seu “Ensemble Barroco” que eu próprio fiz questão de “requisitar” por convite! Mas foram umas gotinhas de água no grande oceano da desolação. Até estes últimos anos. Que agora o espaço é outro e a “nova” Soares tem-no até dizer basta. Com o dinamismo da Biblioteca, disposta a “alargar os seus horizontes”, como é bonito de dizer! Por isso, de vez em quando “dá-se-nos uns ares de música”: recordo o espectáculo de “renascentista” de há umas semanas, com os veteranos Luis Miguel Fontes, contra-tenor e João Carlos Soares, harpista. Profissionais do encanto, eles transformaram o nosso grande auditório num santuário de charme, de deleite, de estesia que soube muito bem naquele fim de tarde poético e luminoso, escancarando as portas da alma àqueles que por lá se ajuntaram, sem outro aceno que não o “porque sim” que é o definitivo estado em que arte nos deve assistir. A todos, de alma e de corpo. Porque fomos feitos para “isto”.
A página mais recente tivémo-la decorada inteiramente com material da casa: só alunos, desses vários e numerosos, que se vê, não andam por cá a passear ou a “jogar as cartas”, mas “cheiinhos de trabalho”, de “caracol”sempre às costas: o Daniel Figueiredo, na flauta de bisel, a Mariana Pedro, abraçada ao seu violoncelo, o Marcelo Reis, na percussão e a Inês Loubet, na voz e que voz! Pois este conjunto encantou-me/nos. A todos os que por lá demos umas “feriazitas antecipadas” ao estômago, fazendo-o esperar mais uns minutos pelo almoço. E então “vimos” com uma “aparição” digna do romance homónimo de Vergílio Ferreira, quando a pequena Cristina solta do piano, ao serão da antiga casa alentejana dos Mouras, o encantamento do indizível, essa forma humana de transfiguração que é a única forma de escapar à negritude lamacenta da nossa finitude. A voz de rouxinol da Inês soltou-se, vagueando por esse vastíssimo corredor, encheu com suaves modulações o vazio das paredes frias e incómodas. Senti-me, não sei bem porquê, transportado para as claridades das paisagens polinésias de Paul Gauguin, habitadas pela brisa que abana ao de leve os canaviais que anunciam o discurso límpido das águas, onde uma gaivota roça a asa e o sol se esconde numa suavidade espelhada na pele das jovens nativas. Com grinaldas na cabeça para a cena ser mais fiel.
E juro que o quadro deixou de ser inteiramente “fauve”, porque eu “vi”, no abraço carinhoso da Mariana ao seu violoncelo, arrancando-lhe, com volúpia, uns suspiros de enamoramento onde estava todo o amor desse fogo flamejante de Guilhermina Suggia pelo seu catalão mundano e cosmopolita Pablo Casals. Então me apeteceu saudar a infinitude do instante e saudar o filósofo nórdico Kierkegaard pela indomável verdade “só para mim” de habitar essa nesga de tempo que, de tão evanescente, só pode caber na infinita e admirável mão de Deus.
José Melo ( de Filosofia)

Concurso literário 2008/2009


A apoteose de Balzac

Sou um mentiroso. A minha acção mente-me, e o papel e tinta que registam o meu cansado monólogo são só uma extensão dessa grande mentira que é a vida.
Escrevo sobre um dia qualquer, um dia pouco importante que a minha mente perdeu na sua jornada perigosa de crença incessante. Escrevo sobre esse dia que é o que mais me satisfaz dos 367 que conto por ano. Escrevo sobre esse dia que esqueci, escrevo agora e escrevo sempre, pois todos os outros dias já estão escritos – e quem os escreve é melhor escritor que eu, pobre de mim que penso escrever… Pobre de mim que penso. Pobre de mim. Pobre. Penso.

Algumas das persianas pendiam suspensas apenas de uma só dobradiça. As portas desconjuntadas não pareciam poder resistir a qualquer assalto. Sobrecarregadas de tufos refulgentes de visco, os ramos das árvores frutíferas, abandonadas, estendiam-se até muito longe sem frutos. Altas árvores erguiam-se no meio das avenidas. Semelhantes destroços imprimiam ao quadro efeitos de uma poesia empolgante e na alma do espectador ideias sonhadoras.*

A cidade era naquele dia salpicada de cores incolores. O céu era um vómito de azul tímido… Tudo à volta era um bloco de vegetação densa e sombria. Simultaneamente assustadora e acolhedora.
As cores pouco coloridas que cobriam a paisagem faziam daquele dia um daqueles dias que se esquecem que é de dia o tempo de se mostrarem ao dia.
Já não me lembro bem, mas andava eu pela estação de comboio, meio perdido no sei lá o quê que me absorve e é esquecido… Quando o comboio que faz “Estação do Devaneio” – “Desconhecido” e efectua paragens em todas as estações chegou a esta etapa da sua viagem. Entrei…
Com a mesma postura com que uma camisa fica pendurada numa cruzeta, fiquei ali eu – parado – com o objectivo de encontrar um assento, com esse objectivo que em três segundos é gradualmente entornado numa mancha líquida no chão e desaparece, nesse milagre que é o desaparecimento…
Mecanicamente – fruto do desabrochar de uma rosa de mente – sentei-me num assento que rapidamente se transformou numa cama. Nervosa, a mulher ao meu lado levantou-se e levantou consigo o tom de voz - quebrando o silêncio desértico e agudo, presença pesada naquela carruagem – “Não gosto destes comboios onde se deitam nos bancos!” e dizendo isto, não sei como, desapareceu. Mas algo dela, algo sem presença física, permaneceu sentado a meu lado para me castigar.
Então eu disse: - Não chores por favor!
Ao que me respondeu: Não chores por favor!
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi. (o volume sonoro ia diminuindo, corria atrás do sussurro…)
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor… – respondi.

E aos poucos este diálogo foi sendo substituído por um crescente barulho branco, agudo e penetrante, com a frescura da menta acariciando os ouvidos…

Um poeta teria ficado ali por muito tempo absorto numa longa tristeza, admirando aquela desordem cheia de harmonias, aquelas ruínas a que não faltava a graça. Nessa altura alguns raios de Sol romperam as fendas das nuvens e iluminaram de raios de mil cores a cena meio selvagem.*

Então dois olhos caíram no grande quadro em movimento, deixando para trás o Grande Juiz que se apodera deles a todo o momento, e na verdadeira liberdade viram. Viram mesmo! Viram apenas e só com a verdadeira essência da visão. Ou seja, eles viram, por Momento viram.

As telhas acastanhadas resplandeceram, os musgos brilharam, sombras fantásticas se agitaram ao longo dos prados, debaixo das árvores; cores mortas despertaram, oposições picantes digladiaram-se, as folhas recortaram-se na claridade. *

Mas tal felicidade não tardou a ser alcançada e digerida por todas as palavras que cortam o momento. Era um e desdobrei-me em dois, e três e mais; e voltei a ser essas tantas palavras; pois o Grande Juiz voltou, mas agora com a certeza - pouco duradoura - que pode ser ultrapassado por olhos que lhe fogem.

De súbito, porém, a luz desapareceu. Aquela paisagem, que parecia ter falado, calou-se, e tornou a ser sombria, ou antes suave, como o mais doce colorido de um crepúsculo de Outono.*

(por fim…)
Tudo aquilo que os sentidos captam (ou projectam?) e a mente digere (ou cria?) voltou, no seu esplendor estranho e incompreensível, com aquela força ofuscante e doente que o fechar das pálpebras depois de uma forte exposição dos olhos à luz ardente causa. E o velho, na tridimensionalidade da sua tridimensional idade, olhou por uma janela do comboio - que o leva a qualquer lugar - e mais descansado – suspirou até – viu a confusão agradável e penosa da sua existência. Imagem por imagem, cheiro por cheiro, som por som, paladar por paladar, toque por toque, analisou a paisagem, deu-lhe mil palavras, deu-lhe mais ainda…
Então, sem se aperceber, as palavras começaram a curvar-lhe as costas. Foi ficando mais pequeno, foi enrolando, pequeno estava, ninguém o via, então começou a desenrolar, foi crescendo… Escreve agora. Escreveu-o agora. E por duas vezes escreveu essa palavra que o lembra da exaltação, da apoteose que por vezes o eleva tão subtilmente, essa exaltação que Balzac com palavras pouco empobreceu.

FIM

* Parágrafos a itálico constituem uma página do livro “O Último Adeus” de Honoré de Balzac.

Destaque da Semana (cont.)









"O fenómeno da instalação foi inicialmente, criticamente, denominado por alguns autores Installation Arte. Este livro revela os interessantes caminhos em que a instalação se envolveu desde então abraçando diferentes e muitas vezes inesperados meios..."

Clube de Leitura (cont.)


METAMORFOSE

"Le faucon est parfois représenté encapuchonné. Il symbolise alors l'espérance en la lumière que nourrit celui qui vit dans les ténèbres [...]: Post tenebras spero lucem."
[1]

A metamorfose, considerada como mudança/transformação na forma ou estrutura do corpo, pode implicar uma mudança de hábitos e de habitat; pode ir além de uma modificação física, pode ser uma alteração de estado psicológico: a nível de comportamento, atitudes, sentimentos e opiniões.
Na Metamorfose de Ovídeo (ano 14), os deuses/mitos transformam-se em animais ou plantas, de forma a destacarem os seus feitos épicos.
Na Metamorfose de Kafka (1912/1915), Gregor transforma-se num insecto e deixa de ter vida própria. A mutação vai além da transformação física. Há uma nova forma de ver o mundo, porque os seus sentidos o apreendem por uma lógica diferente da do quotidiano.
"Todo o indivíduo se desenvolve numa realidade social em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores da vida. No indivíduo confrontam-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade, que representa as potencialidades de um ser único, e a sua criação, que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura"
[2].
Jorge de Sena, em Metamorfoses, medita sobre o destino do homem e ordena um percurso da humanidade, reflectindo sobre a condição humana, a recusa da morte e a possibilidade de recuperação, em termos simbólicos, daquele "tudo / o que de deuses palpita e ressuscita em nós"
[3]. Vai além de uma experiência de metamorfoses do corpo para abordar a problemática da identidade.
Em O físico prodigioso, o amor e a liberdade e a força da sua luta contra a ordem estabelecida vão ultrapassar a morte e o espaço, ao transformarem-se em elemento simbólico.
O Físico, que é ao mesmo tempo o diabo, é simultaneamente um deus .
O jogo e a troca de identidades entre as personagens, a relação entre o corpo e as suas manifestações noutro corpo, a metamorfose do Cavaleiro ao tornar-se invisível (por acção do gorro), a transfiguração da paisagem e a ressuscitação dos mortos são também diferentes formas de metamorfose, assim como o são a mudança de discurso ( o que é dito e o que é ouvido) e o refazer do próprio texto.

Manuela Pereira _ 21mai09

1 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Diccionaire des Symboles
2 autor desconhecido
3 Jorge de Sena, do poema Artemidoro

À descoberta de... Pepetela (cont.)


O homem de impecável fato azul, que passaremos a chamar Vladimiro Caposso, rodou cuidadosamente a chave na fechadura do apartamento, de modo a não fazer barulho. Mal abriu a porta, ouviu os gemidos de Maria Madalena, a grande cabra, e os urros de gozo do dito Toninho. Não precisava de mais para confirmar o que José Matias tinha declarado. Silenciosamente, avançou no apartamento até à porta do quarto que tão bem conhecia. Nem precisou entrar para assistir ao espectáculo dos corpos nus se movimentando freneticamente.
Na rua acontecia uma passeata política, com muitos carros cheios de gente agitando bandeiras rubronegras, cartazes, jovens de camisolas vermelhas e punhos erguidos, gritando slogans e canções políticas. Faltava uma semana para as eleições. A essas passeatas de pessoas empoleiradas em carros, dezenas de carros embandeirados a buzinar e centenas de cidadãos a gritar, o povo no seu aprendizado da recém-chegada democracia chamava carreatas, pois as passeatas deviam ser nomeadas apenas no caso de manifestações a passo. Esta era talvez a maior concentração de veículos de sempre, na maior parte carros pertencentes ao património do Estado, buzinando estridulamente.
Caposso apontou com frieza do lado de fora do quarto, retendo a respiração, como aprendera da arte de bem disparar. Esvaziou o carregador da pistola. Os tiros foram bastante abafados pelo barulho atroador da carreata. Entrou no quarto, empurrou com o cano da pistola o corpo do homem morto. Verificou que ela também estava morta, três buracos perto do coração.

In "Predadores" de Pepetela

16.12.09

Aqui há gato


TEXTO 1

Descalça vai para a ponte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O texto nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainha de chamalote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve dura.
Vai fermosa e nada segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro o trançado
Faixa de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo encanta
Corre nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

Luís de Camões, Lírica

TEXTO 2

Tanto de meu fado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente canto e rio;
O mundo todo abarco e tudo aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai que avista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Num’hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos só posso achar um’hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; e nem suspeito
Que é porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões, Lírica

TEXTO 3
Endechas a Bárbara escrava

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já só quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em ditosos molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa. .

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto regular,
Olhos sossegados,
Negros e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo são
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda solidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Ausência serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me retém cativo;
E, pois nela vivo,
É força que viva

Luís de Camões, Lírica

Pete Seeger



Pete Seeger é um cantor de intervenção americano, uma espécie de Zeca Afonso que tem 90 anos. E que cantou a vitória de Barak Obama no Memorial de Lincoln, em 18 de Janeiro passado, com o hino de Woody Guthrie “This Land is your Land”, em conjunto com Bruce Springsteen e acaompanhados por uma imensa multidão que incluía o recém-eleito Presidente. Este cant’autor da folk, sempre na estrada, foi um grande companheiro de grandes nomes da música norte-americana, como Woody Guthrie e seu filho Arlo Guthrie, Bob Dylan, Joan Baez, e tantos outros, com quem tocou verdadeiras lendas da folk music, algumas cantadas por grupos de rock como “Turn, turn, turn”cantada pelos Byrd nos anos 60. Os temas das canções são a vida do povo simples, dos operários, das gentes humildes e ignoradas, os próprios escravos negros dos campos de algodão dos estados do Sul que geraram a “soul music” e os espirituais negros, que cantavam uma canção muito conhecida, também cantada por Seeger “Kumaya”. Ou “We shall overcame”, esse grande hino da paz, ou seja anti-guerra do Vietname (ou sobretudo do Iraque).

O mais curioso de tudo isto é que Pete Seeger vai continuando a cantar. Espero até que o tenha feito neste domingo – dia 3 de Maio – na festa que a América lhe dispensou no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Mas dá-nos uma grande lição de sabedoria e de desprendimento: porque recusou sempre a vida fácil da “carreira comercial”, soube exigir a outros de quem estava próximo, musical e ideologicamente, como Bob Dylan, que se mantivessem fiéis aos seus ideais – de denúncia das injustiças, das guerras, dos intervencionismos militares de que o poder americano se mostrou sempre tão pródigo! A sua luta tem sido tão longa e resistente que teve que atravessar o momento dramático do “macCartismo”, quando, nos anos 50 do século XX, intelectuais, cientistas, militares, jornalistas e outros democratas eram perseguidos pelas suas ideias e acusados de “comunistas”, numa verdadeira “caça às bruxas” movida pelo governo americano através do senador Joseph R. MacCarthy. Tudo se prolongou pelos famosos e prodigiosos anos 60, com as lutas anti-raciais e a favor dos direitos cívicos dos negros, a contestação estudantil à guerra do Vietname e a luta dos povos da América Latina de que a bandeira mítica de Che Guevara foi apenas um apontamento, talvez para acicatar a famosa canção “Gantanamera”.

«Em Pete Seeger conjuga-se o tradicional e o actual, as canções de há séculos e as dos cantores urbanos de hoje. Cantará, umas atrás das outras, uma balada escocesa, uma canção de trabalho judaica, uma melodia negra nascida nas prisões do Sul, uma canção de mineiros, outra contra a Guerra do Vietname. O fio condutor desta enorme variedade é a luta contra a injustiça, a fome e a miséria, a sua indestrutível fé no homem, a luta contra toda a opressão.» Escreve Ramon Padilla, em artigo do “Expresso online” de onde respiguei alguns dados. É muito oportuno que as novas gerações, de lá ou de cá, conheçam uma América, tão viva e interessante, que tantas e tantas vezes viveu ou vive ainda no esquecimento, na marginalização apenas porque recusa viver muito consciente e livremente à sombra do dinheiro.

José Melo

Textos (Clube de leitura)

Os reis de portugal deviam fazer exame de língua portuguesa para acederem ao cargo. Escrito e oral.

Desde a primeira palavra que o rei me ditou que eu sabia o que ia acontecer. Aliás, logo que ele me disse que tinha de escrever ao primo, rezei a deus a pedir o cold blood necessário para não reagir praguejando às suas costumadas calinadas e… ser capaz de escrever humildemente, mostrando reverência e unção, meneando a cabeça em sinal de aprovação, a espaços para não parecer mal, tal como me ensinou meu pai: Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto, ferirá como uma ofensa. Já estou treinado. Consigo escrever as barbaridades sintácticas e lexicais que me dita o rei sem contrair um músculo facial. Sintácticas e lexicais, apenas. Ortográficas, nunca! Afinal, sou eu que escrevo. E eu aprendi na melhor das escolas possíveis, a do meu próprio pai de quem herdei o cargo. Já vamos na segunda tentativa, mas eu sei que nem à terceira o rei conseguirá engrenar num discurso coerente além de, obviamente, ser um néscio no uso das fórmulas epistolares usadas entre soberanos. D. joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves não destoaria entre os estudantes das escolas portuguesas do século XXI enredados em TLEBS e demais preciosidades que o ar do tempo produzirá. Daqui a umas duas horas, depois de um sem fim de atropelos à língua portuguesa, já esgotado, o rei dir-me-á, como de costume, que confia por inteiro a redacção da carta à minha habilidade retórica. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Vossa Alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos. As fadas que presidiram ao seu nascimento não o fadaram para o exercício das letras, dirá ele e é verdade, mas convencê-lo-ei de que visitar um elefante é um acto poético reservado a muito poucos. A poesia fica sempre bem.

Quero agradecer ao josé o ter-me reservado este discreto lugar de secretário do rei, assim como as palavras simpáticas que pôs de lado para mim. Confesso que gostei que me chamasse “competente funcionário”e logo numa passagem que acentuava a ingenuidade pateta do rei a perguntar Que é uma acto poético. É certo que pôr o rei a fazer-me aquela pergunta foi uma perfídia do josé para me pôr à prova, mas eu fiz-me desentendido e fiquei-me por um Não se sabe, meu senhor. Ele não teve outro remédio senão ser ele a descalçar a bota, para isso é que é ele o autor e não há nada como um nobel para se desenrascar ( palavra que merecia sair do registo coloquial para o cuidado porque nem desembaraçar nem desenredar dizem bem o mesmo) para se desenrascar, repito, duma situação tão melindrosa pois bastou-lhe pôr uma virgula para definir o indefinível: um acto poético só damos por ele quando aconteceu!

Sim, tenho de lhe agradecer fazer-me secretário do rei. Antes secretário do rei com duas breves aparições na narrativa do que subhro ou fritz (?!) sempre encarrapitado num elefante malcheiroso, a passar frio por esses caminhos até viena, encarregado de proferir palavras sibilnas para dar que pensar ao leitor e, ainda por cima, a ter de agradar ao arquiduque.

Por falar no arquiduque, parece-me que o josé acaba por cair no provincianismo tão português da autoflagelação. Já se sabe que ele não poupa nenhum homem poderoso. É um tique que lhe ficou…, enfim, ficou-lhe de outros tempos, mas os reis de portugal sofrem sempre mais, são sempre um pouco mais idiotas do que os estrangeiros, mesmo se, como d. joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves, tiverem feito uma das maiores reformas culturais que a história já registou. Valha a verdade que ele tem consciência da sua relação tumultuosa com a historia e sai-se airosamente, confessando que mais vale ser romancista, ficcionista, mentiroso assumido do que historiador porque também a história só colhe da realidade a parte que lhe interessa. Desconfio que no José também há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persiste em ignorar tudo.

Talvez sejamos todos elefantes.

Pêro

Alexandra Azevedo


Monólogo de Catarina da Áustria, Raínha de Portugal, quando da partida do elefante para a Áustria.

Oh, Deus meu! Quanto eu te quero a ti, Salomão, só eu o sei!
O que vai ser de ti agora, que vais partir para tão distantes paragens e enfrentar perigos que nunca dantes sonhaste! Má hora aquela em que Satanás me pôs nas cordas da voz a ideia de te oferecer ao primo Maximiliano como presente do seu casamento. O rei, meu marido e senhor, também logo foi aceitar docilmente, como sempre aliás, uma ideia tão nefanda e impensada...
Que melhor pensando, não foi tão mal pensada assim. Afinal, há mais de dois anos que não fazias outra coisa senão comer e dormir, enquanto te sustentávamos sem qualquer esperança de pago. E bem caro nos saías e tanto se malgastou, com a água sempre a jorros e a forragem aos montões. Mas pobre Salomão, que culpa tinhas tu que não houvesse aqui trabalho que te servisse...
Bons tempos aqueles, quando chegaste da Índia, em que fidalgos e fidalgas vinham a Belém e aí chegavam todos os que te queriam ver e admirar os teus “longos incisivos de paquiderme, de uma brancura resplandecente, apenas ligeiramente curvos, como duas espadas apontando em frente.”
omo disse o secretário, Pêro de Alcáçova Carneiro, “bonito ou feio são meras expressões relativas, para a coruja até os seus corujinhos são bonitos” e “para tomar este caso particular de uma lei geral, (Salomão) é(s) um magnífico exemplar de elefante asiático, com todos os pêlos e pintas a que está(s) obrigado pela (t)sua natureza”.
Ter sido proibida de te ir ver, muito me fez chorar! Fez-me o rei a proibição mal disfarçada de ir na excursão a Belém, com o pretexto de não ter qualquer sentido fazer sair um coche, só para ir ver­-te ao cercado. Bem teria eu ido a cavalo e se não o fiz foi para evitar uma crise conjugal. Assim me vi eu, que sou quem mais te quero em todo o Portugal e mesmo em todo o Mundo, impedida de te encontrar uma derradeira vez.
Não tivesse sido o presente do agrado do arquiduque primo Maximiliano, terias sido poupado a fazer este estirão, à pata, até Valladolid, ai! que dor no coração!, para não falar na travessia dos Alpes e de tão estranhas gentes, que ainda te vão a matar...
Mas logo teve que responder, e em latim..., não só que aceita, mas também que agradece a oferta do rei de Portugal. Tivesse a carta vindo escrita em alemão, teria sido eu a melhor das tradutoras e, por isso, ali estava, já pronta para a leitura, logo à sua chegada. Mas não... tinha que responder em latim! Mas a resposta, que já tanto agradeci a Deus-Todo-Poderoso, não poderia ter sido outra; uma recusa teria sido uma vergonha que iria desfeitear-nos perante toda a humanidade.
E assim como assim, ninguém foge ao seu destino...
Até te mudaram o nome! Solimão!
E, embora tivesse ordenado e mandado que ninguém se lembrasse de me comunicar que já tinhas partido, ou que algum mal te acontecera, sei que já vais a caminho. Acabei de acordar desfeita em lágrimas, pois no meu sono tive um pesadelo: sonhei que te levaram e sei que não mais te verei.
Não mais quero pensar em ti, nem de ti ouvir falar! Espero que possas gozar a vida em Viena de Áustria, a mais bela cidade do mundo.
Eu irei ficar aqui “entalada entre hoje e o futuro, e sem esperanças em nenhum dos dois”.
E quando uma carta chegar com notícias tuas ou a contar a tua partida para outro mundo, não quero saber. NÃO QUERO SABER!

Manuela Pereira

25 de Abril








A Soares dos Reis na festa de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(Sophia de Mello Breyner A.)

Com alguma frequência, somos convocados para comemorar mais uma efeméride, uma data significativa, um certo dia iniciático, uma época. E por lá ficamos a bocejar, na cerimónia enfadonha, a “des-ouvir” discursos, a procurar encantar ou desencantar moscas e demais insectos que o ar contenha…E a palavra redonda e banal, de simbolismo universal, é “uma seca”!

Ora não foi isso que se passou com a cerimónia comemorativa do 25 de Abril que a nova Soares dos Reis celebrou no passado dia 23. Porque a moldura humana nos aconchegou a alma. Principalmente a dos mais velhos que guardam no seu coração essa hora fundamental das suas vidas, quando a madrugada de Liberdade deixou de ser apenas metáfora poética e ousou confundir-se total e completamente com a nossa existência pessoal e colectiva; quando o povo saiu à rua porque já não podia mais continuar escondido em casa; quando finalmente o sonho tão longo se tornou realidade e nós testemunhámos que “ser livre” passou a ser a verdade completa de um desejo.

Mas a moldura humana que viveu a força poética das canções de Zeca Afonso, que as trauteou, que cantou em coro, que exibiu dotes vocais e instrumentais, era, acima de tudo, a dos “filhos da madrugada”, dos nossos jovens alunos. O tal “divino tesouro”, como lhes chamou o poeta nicaraguano Rúben Dario. Que estiveram em peso e participaram, intervieram, fizeram do acto uma festa sua, como se eles mesmos, saíssem à rua e celebrassem o grande Momento inaugural, como intérpretes e não já espectadores. Tal como Nietzsche afirmava, o “coro trágico” grego estava “dentro” do palco não era “público”, entidade exterior coisificada.

E isto moveu o meu espírito para a reflexão pedagógica necessária: que temos feito, nós, professores, adultos responsáveis pela transmissão da herança dos valores daquela geração que nos antecedeu e acompanhou, que lutou, que sofreu, que enfrentou os perigos e os esbirros de uma ditadura inominável e quase-“eterna”? Suspeito que temos feito pouco, que nos instalamos demasiado depressa nos nossos afazeres, deixamos passar, de forma desapercebida, os avisos que nos são enviados acerca do facto de que a Liberdade não é senão uma conquista diária, que é urgente defendê-la com actos, com gestos e com atitudes. Pois exige determinação, exemplo, trabalho, exigência, honestidade e muita, muita fraternidade!

Não posso, contudo, deixar de assinalar a presença tão significativa de professores, de funcionários e de pais, para além, claro, dos maioritários alunos. E ainda dos “ilustres convidados”: amigos de amigos que acederam, com uma viola, com uma guitarra, com uma voz, trazer “outro amigo também”! Aposto que todos acabámos por sentir, num ou noutro momento mais cúmplice, um olhar feito gaivota, um sorriso brilhante de estrela, um suspiro aberto ao mar, um peito rasgado ao céu. Para agitarmos juntos a bandeira do Poema – aquela nossa feição própria de crescermos pela Vida acima como quem sobe a rua alegre que nos leva a casa!

Parafraseando a cantiga do Chico Buarque, “foi bonito estar na Festa, pá!” José Melo.

À descoberta de... Nuno Bragança (cont.)


"A partir desse evento, o meu futuro seria outro. Por determinação do Conselho, um Professor de Cultura Mental velaria pela minha inteligência, a qual, segundo o consenso familiar, corria o grave risco de se interessar por coisas inquietantes.
O Professor era idoso, bengaludo (falta de sinóvia), e tinha os mais compridos pêlos nasais que até hoje me foi dado contemplar. A sua maior glória era o ter sido preceptor de um Príncipe, e disso falava com sorrisos! Traçava algarismos de retorcida elegância, manejando, para esse efeito, um lápis verde-alface. Usava lenços brancos rescendendo a uma qualquer viril água-de-colónia, e a brancura da sua pele, do seu cabelo e dos seus punhos de camisa exigia (e alcançava) o amarelo contraponto do oiro, num par de botões de punho, numa corrente de relógio ventral, e numa finíssima aliança, daquelas que se abrem para mostrar uma data e um nome.
Com voz forte e paciência longa ele me ensinou. Escritura, Leitura, Contabilidade, Reflexão Methódica e Saltos-para-o-ar. Ao nono dia do ensinamento realizei o projecto que pesava, havia tempos, no meu pensamento: pegando nos papéis, livros e alfaias outras que repousavam sobre a chamada Mesa de Trabalho (sem esquecer o lápis verde-alface), arremessei o todo pela janela aberta. Seguiram-se um segundo de silêncio, e, logo após, os gritos furiosos do Carpinteiro da Casa, a quem um Tractado de Ponderação Gaulesa machucara severamente um furúnculo.
(«Tinha a ideia de espremer este furúnculo amanhã de manhã», rezava a exposição escrita que o mesmo Carpinteiro endereçou nessa tarde ao meu avô. «E agora, pergunto a Vossa Excelência o que vou eu fazer amanhã de manhã?»).
Como o avô era o único membro da Família que se encontrava em casa quando da minha rebelião, a ele se dirigiu o Professor, exigindo satisfações.
«Detesto a juventude, e ainda para mais quando é porca», declarou ele (avô) ao outro ele (o Professor). «A juventude é má, ociosa e egoísta. Pessoalmente, divido os habitantes do mundo em duas classes: a dos que leram romances franceses antigos e a dos que não leram romances franceses antigos. Se eu fosse Deus, fulminaria a segunda e colocaria a primeira à testa de todos os Bancos, Jornais e Repartições. Isto é a minha Opinião», concluiu, com um sorriso severo.
«Senhor», exclamou, trémulo de ira, o Professor. «Pessoalmente e em nome da minha falecida mulher, odeio todos os romances, ainda mais os franceses, e especialmente -muito especialmente - os antigos, pois os considero ruins árvores cujo nefasto fruto é a revolta e, consequentemente, o desemprego. Boa tarde, pois!» E retirou-se para sempre, esquecendo-se de fechar a porta. Por esta entrou, minutos decorridos, o gato da casa. O qual, após vários disparates, mijou-se no tapete. O meu avô, por fim, zangou-se com a governanta e de forma tal que a pobre mulher ficou de lágrimas nos olhos, pois era viúva e órfã."
Assim findou este agitado dia e também a primeira parte da minha instrução.

In “A Noite e o Riso”, Nuno Bragança

Destaque da semana (cont.)






", apresentadas por ordem alfabética, incluem igualmente exemplos de trabalhos recentes, bem como informações biográficas e contactos, tornando este guia não só uma colectânea inspiradora como também um trabalho de referência excepcional e valioso."

Excertos do texto da contracapa do livro