2.3.10

Aqui há gato (cont.)


TEXTOS

10º ano

Lá no “assento etéreo” onde repousa, o poeta está descontente com a forma como estes bichanos atrevidos estão a pôr em causa o seu “engenho e arte ”
Antes que o seu “duro génio de vinganças” se abata sobre eles, cabe-te a ti, que és estudante do 10º ano e, portanto, um profundo conhecedor da lírica camoniana, enxotar esses gatos e repor a verdade dos textos.

TEXTO 1-

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros teus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjugaram
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas raivas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente*

Errei todo o percurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esquivanças.

De Amor não vi senão curtos enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que cansasse
Este meu duro Génio de vinganças!

TEXTO 2-

Na fonte está Leanor

Na fonte está Leanor
levando a talha e chorando,
às amigas perguntando:
vistes lá o meu amor?

VOLTAS

Posto o entendimento nele,
porque a tudo o Amor a obriga,
cantava, mas a cantiga
eram murmúrios por ele.
Nisto estava Leanor
o seu desejo esganando,
às amigas perguntando:
vistes lá o meu amor?

O rosto sobre üa mão,
os pés no chão bem pregados,
que, do andar já cansados,
algum descanso lhe dão.
Desta sorte Leanor
suspende de quando em quando
sua dor; e, a si voltando,
mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,
que não quer ter dor que abrande
Amor, porque em mágoa grande
seca as lágrimas a mágoa.
Assi que de seu amor
soube, novas perguntando,
sem aviso a vi chorando.
Olhai que extremos de dor!

TEXTO 3-

Transforma-se o amador na cousa amada

Transforma-se o amador na cousa amada
Em virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo mais por que esperar
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se por ela está minha alma transtornada
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode sossegar
pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e dura sem ideia
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a minh'alma se conforma,

está no entendimento como ideia
e o vivo e puro horror de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

11º ano

Os excertos de “Os Maias” aqui publicados contêm alterações que estão a irritar profundamente Eça de Queirós que, sentado na chaise-longue que os anjos lhe prepararam no Paraíso, está vociferando contra os bárbaros que devastaram a sua prosa. Resta-lhe exortar a mocidade que frequenta o 11º ano desta escola a buscar as realidades através das aparências, repondo a verdade da arquitectura estilística que o individualiza.

TEXTO 1

[...]
Afonso da Maia pousou os dados, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor – enquanto ele, com os pés fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:
- É festa, vovô... É uma maldade!... O Vilaça pode-se escandalizar... Oh vovô, eu não tenho sono!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o ardor. As senhoras censuraram logo aquela rigidez: aí estava uma coisa inadmissível; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...
- Oh Sr. Afonso da Maia, por que não deixou estar a criança?
- É necessário método, é necessário método, balbuciou ele, entrando, todo pálido do seu rigor.
E à mesa do jogo, apanhando as cartas com as mãos trémulas, repetia ainda:
- É necessário método. Crianças à noite dormem.
D. Ana Silveira voltando-se para o Vilaça - que cedera o seu lugar ao Dr. delegado e vinha conversar com as senhoras - teve aquele sorriso mudo que lhe franzia os lábios, sempre que Afonso da Maia falava em «método.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar de ironia, que, talvez por ter a inteligência curta, nunca compreendera a vantagem dos «método»... Era à inglesa, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ela estava enganada, ou Sta. Olávia era em terras de Portugal...
E como Vilaça inclinava pesadamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Afonso dentro não ouvisse, desabafou. O Sr. Vilaça naturalmente não sabia, mas aquela educação do Carlinhos nunca fora aprovada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um herege, um protestante, como preceptor na família dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o Sr. Afonso tinha aquele anjo do abade Custódio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria à criança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, prepará-lo para fazer um brilharete em Lisboa.
Nesse momento, o abade, suspeitando uma corrente de ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Afonso já não podia ouvir, D. Ana ergueu a voz:
- E olhe que o Custódio teve desgosto, Sr. Vilaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que sucedeu com a Macedo.
Vilaça já sabia.
- Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contrição...
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar surdo ao céu através do tecto.
- Horroroso! continuou D. Ana. A pobre mulher chegou lá a nossa casa escandalizada... E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquilo três noites a fio...
Calou-se um momento. Vilaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a chávena de café nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outra languidez de sonolência passou na sala; D. Eugénia, com as pálpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha mole no crochet; e a noiva de Carlos, atirada para o canto do sofá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabelos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:
- Sem contar que o pequeno está muito atrasado. A não ser um bocado de inglês, não sabe nada... Nem tem predicado nenhum!
- Mas é muito esperto, minha rica senhora! acudiu Vilaça.
- É possível, respondeu secamente a inteligente Silveira.
E, voltando-se para Eusebiosinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de pedra:
- Oh filho, diz tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Eusébio, filho, sê bonito...
Mas o menino, molengão e triste, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampará-lo, para que o tenro prodígio não caísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e arrastado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...
Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos vivaços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melodia, ia cerrando as pálpebras.
- Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Eusebiosinho acabou coberto de suor. Que memória! Que memória! É um prodígio!...

Eça de Queirós, Os Maias

TEXTO 2

[...]
A duquesa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava também aquela que os olhos de Carlos procuravam, desesperadamente e sem esperança.
- É um canteirinho de orquídeas meladas – disse o Taveira, repetindo um dito do Ega.
Carlos, entretanto, fora falar à sua amiga D. Maria de Noronha que, havia momentos o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso de boa mamã. Era a única senhora que ousara descer do retiro em forma de janela da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas como ela disse, não aturava a seca de estar lá em cima perfilada, à espera da procissão do Senhor dos Passos.
(...) Apenas Carlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comédia para se vingar de Lisboa, chamada o Lamaçal...
- Entra o Cohen? perguntou ela, rindo.
- Entramos todos, Sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...
Nesse momento, por trás do recinto, rompia, com um taran-tan-tan molengão de tambores e pratos, o hino da Carta, a que se misturou uma voz de oficial e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, o príncipe apareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de veludo, e chapéu branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora espanhola, essa, tomou os óculos do regaço de D. Maria, e de pé, muito descansadamente, pôs-se a examinar o rei. D. Maria achava ridícula a música, dando às corridas um ar de festival... Além disso, que tolice, o hino, como num dia de parada!
(...) No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os números dos dois cavalos que corriam o primeiro prémio dos “Produtos”. Eram o n.º1 e o n.º 4. D. Maria Teles quis-lhe saber os nomes, com o apetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programa:
- Deixe estar o menino, disse ela, tocando-lhe no braço. Aí vem o nosso Alencar, com o programa... Olhe para aquilo! Veja se ainda hoje os há por aí com aquele ar de sentimento e de poesia...
Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pesagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programa, e já de longe sorrindo à sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto dela, descoberto, bem penteado nesse dia, com um lustre de óleo na carapinha, levou-lhe a mão aos lábios, fidalgamente.
D. Maria fora uma das suas lindas contemporâneas. Tinham dançado muita ardente valsa nos salões de Arroios. Ela tratava-o por tu. Ele dizia sempre boa amiga, e querida Maria.

(...) Eram quase três horas, e agora, de certo, ela já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não aparecia também... Começava a invadi-lo uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Vilar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquilamente a tarde dentro do seu roupão, com um livro, longe de todo aquele tédio.
No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos de ourelo, passou pelo braço do irmão, abonecada, com o arzinho petulante e enjoado de tudo, falando alto inglês. Depois foi a ministra da Baviera, a baronesa de Craben, enorme, empavoada, com uma face maciça de matriarca romana, a pele cheia de manchas cor de tomate, a estalar dentro dum vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atrás o barão, pequenino, amável, aos saltinhos, com um grande chapéu de palha.
D. Maria da Cunha erguera-se para lhes falar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de peru, a voz da baronesa achando que c'était charmant, c'était très beau. O barão, aos pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante daqueles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a sua atitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte nua.
Quando eles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que detestava alemães! O ar de sobranceria com que aquela ministra, com feitio de barrica, deixando sair o sebo por todas as costuras do vestido, o olhara, a ele! Ora, a indolente baleia!

12º ano

Gato que brincas na rua – Este é o 1º verso de um conhecido poema de Fernando Pessoa.
O problema é que, desta vez, os gatos estão a brincar não na rua, mas com os seus poemas. E a forma como estes felinos o fazem, desvirtuando o texto inicial, está a colocar o poeta fora de si:
"Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu."
O teu conhecimento da poética de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos vai, certamente, facilitar-te a tarefa de sossegar o poeta, repondo a verdade dos poemas. Para isso, basta-te descobrir os “gatos” que tanto o atormentam.

TEXTO 1

LIBERDADE

Ai que prazer
não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar não é nada.
O sol brilha sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
sem edição especial.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente divinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis manchados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa alguma.

Quanto é pior quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a verdade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de brilhar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse discoteca...

Fernando Pessoa

TEXTO 2

O meu olhar é nítido como um guarda-sol.
Tenho o costume de andar pelas auto-estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo inicial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a terna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o desejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não entender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente da cabeça)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho psicologia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca quer o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna paciência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro
TEXTO 3

LISBON REVISITED
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com soluções!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em ética!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas complexos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a parecê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me cansado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, dizia-lhes, a todos, a verdade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que temos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero estar sozinho.
Já disse que estou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo celestial e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de ontem de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos

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