26.3.10

Tributo a Jean Ferrat (cont.)





Pois não é para isso que serve a música e as canções? Falemos, pois, de Jean Ferrat, desse “cantautor”, como diriam os vizinhos espanhóis, que se finou no passado dia 13 de Março, não ao anúncio das andorinhas, como diz na canção “Montagne”, quando o Outono acaba de chegar, mas numa primavera dessa maravilha que dá pelo nome de “France profonde”.Para quem teima em gostar da França, por causa da sua cultura, das “belles lettres”, da filosofia, do cinema da “nouvelle vague” e de tantas coisas que ganham ser na dimensão simbólica de um jornal debaixo do braço, a embrulhar a baguete matinal. Tudo isso encenado numa pracinha graciosa, onde os transeuntes se cruzam à pressa, rumo ao conforto das suas “maisons”, muito discretamente resguardadas por essas eternas e omnipresentes portadas de madeira, a condizer com as cores ocres ou acinzentadas dos edifícios que circundam o monumento obrigatório “aux enfants “ que morreram pela pátria na I e na II Guerra. Tudo isto acompanhado pelos bem cuidados plátanos que dão sombra e acolhimento às esplanadas dessa virtuosa “ideia inata” que são os cafés, a mais maravilhosa invenção que os franceses alguma vez legaram ao mundo. E de lá provêm os crepes, os croissants, as “frittes”, os chocolates quentes e tantas iguarias…Tudo inundado numa atmosfera de odores que misturam perfumes, vinhos, flores, sinos das igrejas e uma paz que nos reconforta e reconstrói os sentidos até à alma.
Jean Ferrat cantou-nos a França, toda ela, com o amor fabricado pelos deuses do pormenor, com o asco e a negritude dos sofrimentos, das injustiças, das desigualdades, dos “goulags” e de tantas formas de criar, de promover o mal: como aquele que obrigou um emigrante judeu, joalheiro de Versalhes, a “embarcar” à força para Auschwitz, levando consigo a ideia-saudade eterna de um miúdo loiro, salvo aos 11 anos por “camaradas” dessa maldita “Nuit et Brouillard” –título de uma das quase 200 canções -, enquanto uma jovem viúva sobrevivia à barbárie, fazendo flores tristes de papel. Mas o menino cresceu, aprendeu a cantar e a tocar nos “boulevards” parisienses da libertação, dando um outro sentido à vida, feito de lutas, de reivindicações, de ameaças e de torturas, mas também da ternura, do amor, da voz doce dos poetas – Aragon, Verlaine, Machado. Expressou os sinais meigos do luar impressos no olhar límpido das mulheres, das suas causas e dos seus segredos e carinhos. Vergastou com impiedade a sociedade consumista e medíocre, habitada por “demoiselles de magazin” que não se interessam por “rien” e chamou a si a flama dos ideais, dos sonhos, das manhãs que cantam ou dos amanhãs que cantavam, ainda que carregando a vergonha de Praga, “espectáculo” desmascarado em “Camarade”.
E no Maio de todas as incertezas, ou de todas as primaveras, Ferrat cantou o “tempo das cerejas”, escreveu poemas em cima dos automóveis e viu Jesus fazer amor por entre campos de flores: sem ninguém a ver. Tantas e tantas formas de trazer a poesia para a rua, obrigá-la a sair das cavernas, habitar as montanhas e os vales desse hexágono tão cheio de contrastes e de palavras como de sementeiras e de colheitas, de fábricas e de livros, das ideias, de misturas étnicas e de um apego à História porque transformou de raiz os antigos eternos súbditos em cidadãos, de direitos e de liberdades. Como se as brumas ficassem para sempre do outro lado da montanha, tal como é preciso imaginar!
Jean Ferrat legou-nos um testemunho, levando ao vento o seu pregão “Eu não sou mais que um grito”: fixou o seu espaço vital numa Ardèche rural, longe dos ruídos e mais próximo da interioridade do espírito, lá onde se pode criar, imaginar, pensar, interrogar , inquietar e perturbar as águas mansas do “establishment”, fazendo-o numa voz inconfundível e generosa, tão cândida e romântica quanto tonitruante e agreste para abrir todas as portas e janelas da grande casa do Sentido. Foi verdadeiramente a voz da “multiplicação dos pães em cada mesa” como cantou numa dessas canções que nunca morrerá!
(José Melo – de Filosofia)

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