Os reis de portugal deviam fazer exame de língua portuguesa para acederem ao cargo. Escrito e oral.
Desde a primeira palavra que o rei me ditou que eu sabia o que ia acontecer. Aliás, logo que ele me disse que tinha de escrever ao primo, rezei a deus a pedir o cold blood necessário para não reagir praguejando às suas costumadas calinadas e… ser capaz de escrever humildemente, mostrando reverência e unção, meneando a cabeça em sinal de aprovação, a espaços para não parecer mal, tal como me ensinou meu pai: Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto, ferirá como uma ofensa. Já estou treinado. Consigo escrever as barbaridades sintácticas e lexicais que me dita o rei sem contrair um músculo facial. Sintácticas e lexicais, apenas. Ortográficas, nunca! Afinal, sou eu que escrevo. E eu aprendi na melhor das escolas possíveis, a do meu próprio pai de quem herdei o cargo. Já vamos na segunda tentativa, mas eu sei que nem à terceira o rei conseguirá engrenar num discurso coerente além de, obviamente, ser um néscio no uso das fórmulas epistolares usadas entre soberanos. D. joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves não destoaria entre os estudantes das escolas portuguesas do século XXI enredados em TLEBS e demais preciosidades que o ar do tempo produzirá. Daqui a umas duas horas, depois de um sem fim de atropelos à língua portuguesa, já esgotado, o rei dir-me-á, como de costume, que confia por inteiro a redacção da carta à minha habilidade retórica. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Vossa Alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos. As fadas que presidiram ao seu nascimento não o fadaram para o exercício das letras, dirá ele e é verdade, mas convencê-lo-ei de que visitar um elefante é um acto poético reservado a muito poucos. A poesia fica sempre bem.
Quero agradecer ao josé o ter-me reservado este discreto lugar de secretário do rei, assim como as palavras simpáticas que pôs de lado para mim. Confesso que gostei que me chamasse “competente funcionário”e logo numa passagem que acentuava a ingenuidade pateta do rei a perguntar Que é uma acto poético. É certo que pôr o rei a fazer-me aquela pergunta foi uma perfídia do josé para me pôr à prova, mas eu fiz-me desentendido e fiquei-me por um Não se sabe, meu senhor. Ele não teve outro remédio senão ser ele a descalçar a bota, para isso é que é ele o autor e não há nada como um nobel para se desenrascar ( palavra que merecia sair do registo coloquial para o cuidado porque nem desembaraçar nem desenredar dizem bem o mesmo) para se desenrascar, repito, duma situação tão melindrosa pois bastou-lhe pôr uma virgula para definir o indefinível: um acto poético só damos por ele quando aconteceu!
Sim, tenho de lhe agradecer fazer-me secretário do rei. Antes secretário do rei com duas breves aparições na narrativa do que subhro ou fritz (?!) sempre encarrapitado num elefante malcheiroso, a passar frio por esses caminhos até viena, encarregado de proferir palavras sibilnas para dar que pensar ao leitor e, ainda por cima, a ter de agradar ao arquiduque.
Por falar no arquiduque, parece-me que o josé acaba por cair no provincianismo tão português da autoflagelação. Já se sabe que ele não poupa nenhum homem poderoso. É um tique que lhe ficou…, enfim, ficou-lhe de outros tempos, mas os reis de portugal sofrem sempre mais, são sempre um pouco mais idiotas do que os estrangeiros, mesmo se, como d. joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves, tiverem feito uma das maiores reformas culturais que a história já registou. Valha a verdade que ele tem consciência da sua relação tumultuosa com a historia e sai-se airosamente, confessando que mais vale ser romancista, ficcionista, mentiroso assumido do que historiador porque também a história só colhe da realidade a parte que lhe interessa. Desconfio que no José também há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persiste em ignorar tudo.
Talvez sejamos todos elefantes.
Pêro
Alexandra Azevedo
Monólogo de Catarina da Áustria, Raínha de Portugal, quando da partida do elefante para a Áustria.
Oh, Deus meu! Quanto eu te quero a ti, Salomão, só eu o sei!
O que vai ser de ti agora, que vais partir para tão distantes paragens e enfrentar perigos que nunca dantes sonhaste! Má hora aquela em que Satanás me pôs nas cordas da voz a ideia de te oferecer ao primo Maximiliano como presente do seu casamento. O rei, meu marido e senhor, também logo foi aceitar docilmente, como sempre aliás, uma ideia tão nefanda e impensada...
Que melhor pensando, não foi tão mal pensada assim. Afinal, há mais de dois anos que não fazias outra coisa senão comer e dormir, enquanto te sustentávamos sem qualquer esperança de pago. E bem caro nos saías e tanto se malgastou, com a água sempre a jorros e a forragem aos montões. Mas pobre Salomão, que culpa tinhas tu que não houvesse aqui trabalho que te servisse...
Bons tempos aqueles, quando chegaste da Índia, em que fidalgos e fidalgas vinham a Belém e aí chegavam todos os que te queriam ver e admirar os teus “longos incisivos de paquiderme, de uma brancura resplandecente, apenas ligeiramente curvos, como duas espadas apontando em frente.”
omo disse o secretário, Pêro de Alcáçova Carneiro, “bonito ou feio são meras expressões relativas, para a coruja até os seus corujinhos são bonitos” e “para tomar este caso particular de uma lei geral, (Salomão) é(s) um magnífico exemplar de elefante asiático, com todos os pêlos e pintas a que está(s) obrigado pela (t)sua natureza”.
Ter sido proibida de te ir ver, muito me fez chorar! Fez-me o rei a proibição mal disfarçada de ir na excursão a Belém, com o pretexto de não ter qualquer sentido fazer sair um coche, só para ir ver-te ao cercado. Bem teria eu ido a cavalo e se não o fiz foi para evitar uma crise conjugal. Assim me vi eu, que sou quem mais te quero em todo o Portugal e mesmo em todo o Mundo, impedida de te encontrar uma derradeira vez.
Não tivesse sido o presente do agrado do arquiduque primo Maximiliano, terias sido poupado a fazer este estirão, à pata, até Valladolid, ai! que dor no coração!, para não falar na travessia dos Alpes e de tão estranhas gentes, que ainda te vão a matar...
Mas logo teve que responder, e em latim..., não só que aceita, mas também que agradece a oferta do rei de Portugal. Tivesse a carta vindo escrita em alemão, teria sido eu a melhor das tradutoras e, por isso, ali estava, já pronta para a leitura, logo à sua chegada. Mas não... tinha que responder em latim! Mas a resposta, que já tanto agradeci a Deus-Todo-Poderoso, não poderia ter sido outra; uma recusa teria sido uma vergonha que iria desfeitear-nos perante toda a humanidade.
E assim como assim, ninguém foge ao seu destino...
Até te mudaram o nome! Solimão!
E, embora tivesse ordenado e mandado que ninguém se lembrasse de me comunicar que já tinhas partido, ou que algum mal te acontecera, sei que já vais a caminho. Acabei de acordar desfeita em lágrimas, pois no meu sono tive um pesadelo: sonhei que te levaram e sei que não mais te verei.
Não mais quero pensar em ti, nem de ti ouvir falar! Espero que possas gozar a vida em Viena de Áustria, a mais bela cidade do mundo.
Eu irei ficar aqui “entalada entre hoje e o futuro, e sem esperanças em nenhum dos dois”.
E quando uma carta chegar com notícias tuas ou a contar a tua partida para outro mundo, não quero saber. NÃO QUERO SABER!
Manuela Pereira