18.12.09

O jazz da Soares (cont.)









O Jazz da Soares – “Passoróis” e Rouxinóis

Desde há longos anos que eu meditava num desses paradoxos de que a vida colectiva é pródiga e a que a nossa Soares dos Reis não foge à regra: ‘como é que, sendo esta escola de “artes” as expressões artísticas se haveriam de enganchar no mundo das plásticas, atirando para longe as artes performativas, a dança, o teatro, a música, a literatura, até?’ É certo que houve há muito os “Ornatos Violeta”do Manel Cruz, do Quinorme & Compª.. Que também houve o Grupo de Teatro Xis. E que houve alguns concertos “a sério”, como o da “Orquestra Orff do Porto” e seu “Ensemble Barroco” que eu próprio fiz questão de “requisitar” por convite! Mas foram umas gotinhas de água no grande oceano da desolação. Até estes últimos anos. Que agora o espaço é outro e a “nova” Soares tem-no até dizer basta. Com o dinamismo da Biblioteca, disposta a “alargar os seus horizontes”, como é bonito de dizer! Por isso, de vez em quando “dá-se-nos uns ares de música”: recordo o espectáculo de “renascentista” de há umas semanas, com os veteranos Luis Miguel Fontes, contra-tenor e João Carlos Soares, harpista. Profissionais do encanto, eles transformaram o nosso grande auditório num santuário de charme, de deleite, de estesia que soube muito bem naquele fim de tarde poético e luminoso, escancarando as portas da alma àqueles que por lá se ajuntaram, sem outro aceno que não o “porque sim” que é o definitivo estado em que arte nos deve assistir. A todos, de alma e de corpo. Porque fomos feitos para “isto”.
A página mais recente tivémo-la decorada inteiramente com material da casa: só alunos, desses vários e numerosos, que se vê, não andam por cá a passear ou a “jogar as cartas”, mas “cheiinhos de trabalho”, de “caracol”sempre às costas: o Daniel Figueiredo, na flauta de bisel, a Mariana Pedro, abraçada ao seu violoncelo, o Marcelo Reis, na percussão e a Inês Loubet, na voz e que voz! Pois este conjunto encantou-me/nos. A todos os que por lá demos umas “feriazitas antecipadas” ao estômago, fazendo-o esperar mais uns minutos pelo almoço. E então “vimos” com uma “aparição” digna do romance homónimo de Vergílio Ferreira, quando a pequena Cristina solta do piano, ao serão da antiga casa alentejana dos Mouras, o encantamento do indizível, essa forma humana de transfiguração que é a única forma de escapar à negritude lamacenta da nossa finitude. A voz de rouxinol da Inês soltou-se, vagueando por esse vastíssimo corredor, encheu com suaves modulações o vazio das paredes frias e incómodas. Senti-me, não sei bem porquê, transportado para as claridades das paisagens polinésias de Paul Gauguin, habitadas pela brisa que abana ao de leve os canaviais que anunciam o discurso límpido das águas, onde uma gaivota roça a asa e o sol se esconde numa suavidade espelhada na pele das jovens nativas. Com grinaldas na cabeça para a cena ser mais fiel.
E juro que o quadro deixou de ser inteiramente “fauve”, porque eu “vi”, no abraço carinhoso da Mariana ao seu violoncelo, arrancando-lhe, com volúpia, uns suspiros de enamoramento onde estava todo o amor desse fogo flamejante de Guilhermina Suggia pelo seu catalão mundano e cosmopolita Pablo Casals. Então me apeteceu saudar a infinitude do instante e saudar o filósofo nórdico Kierkegaard pela indomável verdade “só para mim” de habitar essa nesga de tempo que, de tão evanescente, só pode caber na infinita e admirável mão de Deus.
José Melo ( de Filosofia)

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