A apoteose de Balzac
Sou um mentiroso. A minha acção mente-me, e o papel e tinta que registam o meu cansado monólogo são só uma extensão dessa grande mentira que é a vida.
Escrevo sobre um dia qualquer, um dia pouco importante que a minha mente perdeu na sua jornada perigosa de crença incessante. Escrevo sobre esse dia que é o que mais me satisfaz dos 367 que conto por ano. Escrevo sobre esse dia que esqueci, escrevo agora e escrevo sempre, pois todos os outros dias já estão escritos – e quem os escreve é melhor escritor que eu, pobre de mim que penso escrever… Pobre de mim que penso. Pobre de mim. Pobre. Penso.
Algumas das persianas pendiam suspensas apenas de uma só dobradiça. As portas desconjuntadas não pareciam poder resistir a qualquer assalto. Sobrecarregadas de tufos refulgentes de visco, os ramos das árvores frutíferas, abandonadas, estendiam-se até muito longe sem frutos. Altas árvores erguiam-se no meio das avenidas. Semelhantes destroços imprimiam ao quadro efeitos de uma poesia empolgante e na alma do espectador ideias sonhadoras.*
A cidade era naquele dia salpicada de cores incolores. O céu era um vómito de azul tímido… Tudo à volta era um bloco de vegetação densa e sombria. Simultaneamente assustadora e acolhedora.
As cores pouco coloridas que cobriam a paisagem faziam daquele dia um daqueles dias que se esquecem que é de dia o tempo de se mostrarem ao dia.
Já não me lembro bem, mas andava eu pela estação de comboio, meio perdido no sei lá o quê que me absorve e é esquecido… Quando o comboio que faz “Estação do Devaneio” – “Desconhecido” e efectua paragens em todas as estações chegou a esta etapa da sua viagem. Entrei…
Com a mesma postura com que uma camisa fica pendurada numa cruzeta, fiquei ali eu – parado – com o objectivo de encontrar um assento, com esse objectivo que em três segundos é gradualmente entornado numa mancha líquida no chão e desaparece, nesse milagre que é o desaparecimento…
Mecanicamente – fruto do desabrochar de uma rosa de mente – sentei-me num assento que rapidamente se transformou numa cama. Nervosa, a mulher ao meu lado levantou-se e levantou consigo o tom de voz - quebrando o silêncio desértico e agudo, presença pesada naquela carruagem – “Não gosto destes comboios onde se deitam nos bancos!” e dizendo isto, não sei como, desapareceu. Mas algo dela, algo sem presença física, permaneceu sentado a meu lado para me castigar.
Então eu disse: - Não chores por favor!
Ao que me respondeu: Não chores por favor!
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi. (o volume sonoro ia diminuindo, corria atrás do sussurro…)
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor… – respondi.
E aos poucos este diálogo foi sendo substituído por um crescente barulho branco, agudo e penetrante, com a frescura da menta acariciando os ouvidos…
Um poeta teria ficado ali por muito tempo absorto numa longa tristeza, admirando aquela desordem cheia de harmonias, aquelas ruínas a que não faltava a graça. Nessa altura alguns raios de Sol romperam as fendas das nuvens e iluminaram de raios de mil cores a cena meio selvagem.*
Então dois olhos caíram no grande quadro em movimento, deixando para trás o Grande Juiz que se apodera deles a todo o momento, e na verdadeira liberdade viram. Viram mesmo! Viram apenas e só com a verdadeira essência da visão. Ou seja, eles viram, por Momento viram.
As telhas acastanhadas resplandeceram, os musgos brilharam, sombras fantásticas se agitaram ao longo dos prados, debaixo das árvores; cores mortas despertaram, oposições picantes digladiaram-se, as folhas recortaram-se na claridade. *
Mas tal felicidade não tardou a ser alcançada e digerida por todas as palavras que cortam o momento. Era um e desdobrei-me em dois, e três e mais; e voltei a ser essas tantas palavras; pois o Grande Juiz voltou, mas agora com a certeza - pouco duradoura - que pode ser ultrapassado por olhos que lhe fogem.
De súbito, porém, a luz desapareceu. Aquela paisagem, que parecia ter falado, calou-se, e tornou a ser sombria, ou antes suave, como o mais doce colorido de um crepúsculo de Outono.*
(por fim…)
Tudo aquilo que os sentidos captam (ou projectam?) e a mente digere (ou cria?) voltou, no seu esplendor estranho e incompreensível, com aquela força ofuscante e doente que o fechar das pálpebras depois de uma forte exposição dos olhos à luz ardente causa. E o velho, na tridimensionalidade da sua tridimensional idade, olhou por uma janela do comboio - que o leva a qualquer lugar - e mais descansado – suspirou até – viu a confusão agradável e penosa da sua existência. Imagem por imagem, cheiro por cheiro, som por som, paladar por paladar, toque por toque, analisou a paisagem, deu-lhe mil palavras, deu-lhe mais ainda…
Então, sem se aperceber, as palavras começaram a curvar-lhe as costas. Foi ficando mais pequeno, foi enrolando, pequeno estava, ninguém o via, então começou a desenrolar, foi crescendo… Escreve agora. Escreveu-o agora. E por duas vezes escreveu essa palavra que o lembra da exaltação, da apoteose que por vezes o eleva tão subtilmente, essa exaltação que Balzac com palavras pouco empobreceu.
Sou um mentiroso. A minha acção mente-me, e o papel e tinta que registam o meu cansado monólogo são só uma extensão dessa grande mentira que é a vida.
Escrevo sobre um dia qualquer, um dia pouco importante que a minha mente perdeu na sua jornada perigosa de crença incessante. Escrevo sobre esse dia que é o que mais me satisfaz dos 367 que conto por ano. Escrevo sobre esse dia que esqueci, escrevo agora e escrevo sempre, pois todos os outros dias já estão escritos – e quem os escreve é melhor escritor que eu, pobre de mim que penso escrever… Pobre de mim que penso. Pobre de mim. Pobre. Penso.
Algumas das persianas pendiam suspensas apenas de uma só dobradiça. As portas desconjuntadas não pareciam poder resistir a qualquer assalto. Sobrecarregadas de tufos refulgentes de visco, os ramos das árvores frutíferas, abandonadas, estendiam-se até muito longe sem frutos. Altas árvores erguiam-se no meio das avenidas. Semelhantes destroços imprimiam ao quadro efeitos de uma poesia empolgante e na alma do espectador ideias sonhadoras.*
A cidade era naquele dia salpicada de cores incolores. O céu era um vómito de azul tímido… Tudo à volta era um bloco de vegetação densa e sombria. Simultaneamente assustadora e acolhedora.
As cores pouco coloridas que cobriam a paisagem faziam daquele dia um daqueles dias que se esquecem que é de dia o tempo de se mostrarem ao dia.
Já não me lembro bem, mas andava eu pela estação de comboio, meio perdido no sei lá o quê que me absorve e é esquecido… Quando o comboio que faz “Estação do Devaneio” – “Desconhecido” e efectua paragens em todas as estações chegou a esta etapa da sua viagem. Entrei…
Com a mesma postura com que uma camisa fica pendurada numa cruzeta, fiquei ali eu – parado – com o objectivo de encontrar um assento, com esse objectivo que em três segundos é gradualmente entornado numa mancha líquida no chão e desaparece, nesse milagre que é o desaparecimento…
Mecanicamente – fruto do desabrochar de uma rosa de mente – sentei-me num assento que rapidamente se transformou numa cama. Nervosa, a mulher ao meu lado levantou-se e levantou consigo o tom de voz - quebrando o silêncio desértico e agudo, presença pesada naquela carruagem – “Não gosto destes comboios onde se deitam nos bancos!” e dizendo isto, não sei como, desapareceu. Mas algo dela, algo sem presença física, permaneceu sentado a meu lado para me castigar.
Então eu disse: - Não chores por favor!
Ao que me respondeu: Não chores por favor!
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi. (o volume sonoro ia diminuindo, corria atrás do sussurro…)
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor! – respondi.
- Não chores por favor! – respondeu.
- Não chores por favor… – respondi.
E aos poucos este diálogo foi sendo substituído por um crescente barulho branco, agudo e penetrante, com a frescura da menta acariciando os ouvidos…
Um poeta teria ficado ali por muito tempo absorto numa longa tristeza, admirando aquela desordem cheia de harmonias, aquelas ruínas a que não faltava a graça. Nessa altura alguns raios de Sol romperam as fendas das nuvens e iluminaram de raios de mil cores a cena meio selvagem.*
Então dois olhos caíram no grande quadro em movimento, deixando para trás o Grande Juiz que se apodera deles a todo o momento, e na verdadeira liberdade viram. Viram mesmo! Viram apenas e só com a verdadeira essência da visão. Ou seja, eles viram, por Momento viram.
As telhas acastanhadas resplandeceram, os musgos brilharam, sombras fantásticas se agitaram ao longo dos prados, debaixo das árvores; cores mortas despertaram, oposições picantes digladiaram-se, as folhas recortaram-se na claridade. *
Mas tal felicidade não tardou a ser alcançada e digerida por todas as palavras que cortam o momento. Era um e desdobrei-me em dois, e três e mais; e voltei a ser essas tantas palavras; pois o Grande Juiz voltou, mas agora com a certeza - pouco duradoura - que pode ser ultrapassado por olhos que lhe fogem.
De súbito, porém, a luz desapareceu. Aquela paisagem, que parecia ter falado, calou-se, e tornou a ser sombria, ou antes suave, como o mais doce colorido de um crepúsculo de Outono.*
(por fim…)
Tudo aquilo que os sentidos captam (ou projectam?) e a mente digere (ou cria?) voltou, no seu esplendor estranho e incompreensível, com aquela força ofuscante e doente que o fechar das pálpebras depois de uma forte exposição dos olhos à luz ardente causa. E o velho, na tridimensionalidade da sua tridimensional idade, olhou por uma janela do comboio - que o leva a qualquer lugar - e mais descansado – suspirou até – viu a confusão agradável e penosa da sua existência. Imagem por imagem, cheiro por cheiro, som por som, paladar por paladar, toque por toque, analisou a paisagem, deu-lhe mil palavras, deu-lhe mais ainda…
Então, sem se aperceber, as palavras começaram a curvar-lhe as costas. Foi ficando mais pequeno, foi enrolando, pequeno estava, ninguém o via, então começou a desenrolar, foi crescendo… Escreve agora. Escreveu-o agora. E por duas vezes escreveu essa palavra que o lembra da exaltação, da apoteose que por vezes o eleva tão subtilmente, essa exaltação que Balzac com palavras pouco empobreceu.
FIM
* Parágrafos a itálico constituem uma página do livro “O Último Adeus” de Honoré de Balzac.
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