16.12.09

À descoberta de... Nuno Bragança (cont.)


"A partir desse evento, o meu futuro seria outro. Por determinação do Conselho, um Professor de Cultura Mental velaria pela minha inteligência, a qual, segundo o consenso familiar, corria o grave risco de se interessar por coisas inquietantes.
O Professor era idoso, bengaludo (falta de sinóvia), e tinha os mais compridos pêlos nasais que até hoje me foi dado contemplar. A sua maior glória era o ter sido preceptor de um Príncipe, e disso falava com sorrisos! Traçava algarismos de retorcida elegância, manejando, para esse efeito, um lápis verde-alface. Usava lenços brancos rescendendo a uma qualquer viril água-de-colónia, e a brancura da sua pele, do seu cabelo e dos seus punhos de camisa exigia (e alcançava) o amarelo contraponto do oiro, num par de botões de punho, numa corrente de relógio ventral, e numa finíssima aliança, daquelas que se abrem para mostrar uma data e um nome.
Com voz forte e paciência longa ele me ensinou. Escritura, Leitura, Contabilidade, Reflexão Methódica e Saltos-para-o-ar. Ao nono dia do ensinamento realizei o projecto que pesava, havia tempos, no meu pensamento: pegando nos papéis, livros e alfaias outras que repousavam sobre a chamada Mesa de Trabalho (sem esquecer o lápis verde-alface), arremessei o todo pela janela aberta. Seguiram-se um segundo de silêncio, e, logo após, os gritos furiosos do Carpinteiro da Casa, a quem um Tractado de Ponderação Gaulesa machucara severamente um furúnculo.
(«Tinha a ideia de espremer este furúnculo amanhã de manhã», rezava a exposição escrita que o mesmo Carpinteiro endereçou nessa tarde ao meu avô. «E agora, pergunto a Vossa Excelência o que vou eu fazer amanhã de manhã?»).
Como o avô era o único membro da Família que se encontrava em casa quando da minha rebelião, a ele se dirigiu o Professor, exigindo satisfações.
«Detesto a juventude, e ainda para mais quando é porca», declarou ele (avô) ao outro ele (o Professor). «A juventude é má, ociosa e egoísta. Pessoalmente, divido os habitantes do mundo em duas classes: a dos que leram romances franceses antigos e a dos que não leram romances franceses antigos. Se eu fosse Deus, fulminaria a segunda e colocaria a primeira à testa de todos os Bancos, Jornais e Repartições. Isto é a minha Opinião», concluiu, com um sorriso severo.
«Senhor», exclamou, trémulo de ira, o Professor. «Pessoalmente e em nome da minha falecida mulher, odeio todos os romances, ainda mais os franceses, e especialmente -muito especialmente - os antigos, pois os considero ruins árvores cujo nefasto fruto é a revolta e, consequentemente, o desemprego. Boa tarde, pois!» E retirou-se para sempre, esquecendo-se de fechar a porta. Por esta entrou, minutos decorridos, o gato da casa. O qual, após vários disparates, mijou-se no tapete. O meu avô, por fim, zangou-se com a governanta e de forma tal que a pobre mulher ficou de lágrimas nos olhos, pois era viúva e órfã."
Assim findou este agitado dia e também a primeira parte da minha instrução.

In “A Noite e o Riso”, Nuno Bragança

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